Sua saga é o mito da criação empreendedora em sua máxima expressão: Steve Jobs ajudou a fundar a Apple na garagem dos pais em 1976, foi expulso da empresa em 1985, voltou para resgatá-la das portas da falência em 1997 e, no momento de sua morte, em outubro de 2011, a convertera na empresa de maior valor do mundo. No processo, ajudou a transformar sete setores: computação, animação no cinema, música, telefonia celular, tablets, varejo e publicação digital. Jobs pertence, portanto, ao panteão dos grandes inovadores americanos, ao lado de Thomas Edison, Henry Ford e Walt Disney. Embora nenhum deles tenha sido um santo, quando sua personalidade há muito já tiver caído no olvido a história ainda vai lembrar de como aplicaram a imaginação à tecnologia e à atividade empresarial.
Desde que minha biografia de Jobs foi lançada, meses atrás, uma série de gente vem tentando tirar lições de gestão dessa saga. Alguns tiveram boas sacadas, mas creio que muitos (sobretudo aqueles sem nenhuma experiência empreendedora) se aferram demais aos aspectos mais brutos do caráter de Jobs. A essência de Jobs, a meu ver, é que sua personalidade era indissociável da maneira como tocava a empresa. Jobs agia como se as regras normais não valessem para ele, e a paixão, a intensidade e a emotividade extrema que exibia no dia a dia eram coisas que também injetava nos produtos que criava. Não havia como separar sua petulância e impaciência de seu perfeccionismo.
Uma das últimas vezes em que o vi, quando já havia terminado de escrever o grosso da biografia, voltei a perguntar sobre sua tendência a ser duro com os outros. “Veja o resultado”, respondeu Jobs. “Trabalho com gente inteligente, que poderia muito bem conseguir uma bela posição em outro lugar, se realmente estivesse se sentindo maltratada. Mas não.” Depois de uma pausa de alguns instantes, acrescentou, com certa melancolia na voz: “E fizemos um punhado de coisas maravilhosas”. É verdade. Jobs e a Apple tiveram, na última década, uma sequência de sucessos superior à de qualquer outra empresa inovadora dos tempos modernos: iMac, iPod, iPod nano, iTunes Store, Apple Stores, MacBook, iPhone, iPad, App Store, OS X Lion — e isso sem contar todos os filmes da Pixar. Enquanto lutava contra o mal que o mataria, Jobs esteve cercado de um grupo intensamente fiel de colegas que durante anos foram inspirados por ele — e por uma esposa, uma irmã e quatro filhos que o amavam muito.
Creio, portanto, que para entender as verdadeiras lições de Steve Jobs é preciso olhar para aquilo que o homem realizou. Certa vez, perguntei a ele qual era, na sua opinião, a coisa mais importante que tinha criado — crente que iria responder o iPad ou o Macintosh. Mas não. Jobs disse que era a Apple, a empresa. Criar uma empresa duradoura, disse ele, era a um só tempo muito mais difícil e muito mais importante do que criar um belo produto. E como conseguiu? Daqui a um século, escolas de negócios ainda estarão às voltas com essa pergunta. Eis o que considero os segredos de seu sucesso.
Tenha foco
Quando Jobs voltou à Apple, em 1997, a empresa estava produzindo uma leva indiscriminada de computadores e periféricos, incluindo uma dezena de versões distintas do Macintosh. Depois de semanas de sessões de avaliação de produtos, o sujeito finalmente estourou: “Parem tudo!”, esbravejou. “Isso é absurdo.” Jobs agarrou um pincel atômico, caminhou descalço até um quadro branco e nele traçou uma matriz de dois por dois. “Eis o que precisamos”, declarou. No alto de cada uma das duas colunas, escreveu “Consumer” e “Pro”. Na horizontal, colocou “Desktop” e “Portable”. A função de todos ali, disse aos membros da equipe, era fechar o foco em quatro grandes produtos, um para cada quadrante. Tudo o mais devia ser eliminado. Fez-se um silêncio estupefato. Mas, ao instar a Apple se concentrar em produzir apenas quatro computadores, Jobs salvou a empresa. “Decidir o que não fazer é tão importante quanto decidir o que fazer”, ouvi dele. “Isso serve para empresas e para produtos também.”
Tendo endireitado a Apple, Jobs começou a levar para um retiro, todo ano, as cem principais cabeças da empresa. No último dia, se postava diante de um quadro branco (Jobs adorava um quadro branco, pois era algo que lhe dava total controle da situação e gerava foco) e perguntava: “Quais são as dez coisas que deveríamos fazer em seguida?”. Entre o pessoal, era uma briga para ter uma sugestão incluída na lista. Jobs tomava nota de tudo — e, em seguida, passava o pincel por cima daquilo que considerava idiotice. Depois de muita discussão, o grupo chegava a uma lista de dez. Jobs então riscava as sete ideias de baixo e decretava: “Só dá para fazer três”.
O foco era algo indissociável da personalidade de Jobs e fora burilado por sua formação zen. Jobs afastava incessantemente tudo o que considerava distração. Colegas e gente da família às vezes se exasperavam ao tentar fazer com que o empresário lidasse com algum problema — uma questão jurídica, um diagnóstico médico — que julgavam importante. Mas Jobs lançava à pessoa um olhar fulminante e não se desconcentrava enquanto não estivesse pronto.
Já nos últimos meses de vida, Jobs recebeu em casa a visita de Larry Page — que estava prestes a retomar o controle da Google, que ajudara a fundar. Mesmo com as duas empresas em pé de guerra, Jobs estava disposto a aconselhá-lo. “A principal coisa que frisei foi o foco”, recordou. Defina o que a Google quer ser quando crescer, disse a Page. “Agora, [a empresa] está em tudo. Quais são os cinco produtos nos quais quer se concentrar? Livre-se do resto, pois isso está segurando a empresa, está transformando [a Google] numa Microsoft, está fazendo com que lance coisas boazinhas, em vez de espetaculares.” Page seguiu o conselho. Em janeiro de 2012, disse ao pessoal que fechasse o foco num punhado de prioridades, como o Android e o Google+. Ah, e tudo isso devia ter a “beleza” que Jobs teria buscado.
Simplifique
O poder zen de concentração de Jobs era acompanhado do instinto correlato a simplificar as coisas, fechando o foco na essência e eliminando elementos desnecessários. “Simplicidade é a suprema sofisticação”, declarava o primeiro folheto de marketing da Apple. Para entender o que isso quer dizer, basta comparar qualquer software da Apple com, digamos, o Word da Microsoft, que está cada vez mais feio e congestionado, com barras de navegação nada intuitivas e recursos invasivos. É um lembrete do triunfo da busca da simplicidade na Apple.
Jobs aprendeu a admirar a simplicidade quando largou a faculdade e foi trabalhar na Atari. Um game da Atari não vinha com manual e tinha de ser simples o suficiente para que qualquer universitário chapado pudesse entendê-lo. As únicas instruções para o game Star Trek eram: “1. Coloque a ficha. 2. Evite Klingons”. Seu amor pela simplicidade estética foi refinado em conferências de design que frequentou no Aspen Institute no final da década de 1970, num campus de estilo Bauhaus que enfatizava linhas retas e uma arquitetura funcional sem adornos ou distrações.
Quando visitou o Palo Alto Research Center da Xerox e viu os projetos de um computador com interface gráfica do usuário e mouse, Jobs decidiu criar algo ainda mais intuitivo (com o projeto de sua equipe, o usuário podia arrastar e soltar documentos e pastas por um espaço de trabalho, ou desktop, virtual) e mais simples. O mouse da Xerox tinha, por exemplo, três botões e custava US$ 300; Jobs foi a um escritório de design industrial ali perto e disse a um dos fundadores, Dean Hovey, que queria um modelo simples, com um só botão, que saísse por US$ 15. Hovey foi e fez.
Jobs buscava a simplicidade que vem de conquistar, em vez de simplesmente ignorar, a complexidade. Com uma simplicidade tão profunda, percebeu, seria possível produzir um aparelho que desse a sensação de estar cedendo ao usuário de forma amistosa, e não o desafiando. “É preciso muito esforço”, disse Jobs, “para fazer algo simples, para entender de verdade os desafios subjacentes e chegar a soluções elegantes”.
Em Jony Ive, designer industrial da Apple, Jobs encontrou um companheiro na busca de uma simplicidade profunda, não superficial. Os dois sabiam que simplicidade não é só um estilo minimalista nem questão de acabar com o entulho. Para eliminar parafusos, botões ou telas de navegação em excesso, era preciso entender profundamente o papel que cada elemento cumpria. “Para ser realmente simples, é preciso ir muito a fundo”, explicou Ive. “Para não ter parafusos em algo, por exemplo, você pode acabar com um produto muito complicado, muito complexo. A melhor saída é se aprofundar na simplicidade, para saber tudo sobre ele e sobre como é produzido.”
Durante a criação da interface do iPod, Jobs buscava, em toda reunião, achar maneiras de eliminar gorduras. Fez questão de poder acessar o que quisesse com apenas três cliques. Uma tela de navegação, por exemplo, perguntava ao usuário se queria buscar por música, álbum ou artista. “Para que essa tela?”, questionou Jobs. Os designers viram que não era necessária. “Às vezes, quando a gente estava ali queimando os neurônios para achar uma solução para um problema da interface, ele vinha e dizia: “Já pensaram em ‘x’?”, conta Tony Fadell, que liderou a equipe do iPod. “Todo mundo soltava um ‘Puta merda!’. Ele redefinia o problema ou a abordagem, e fazia nosso probleminha desaparecer.” A certa altura, Jobs deu a mais simples de todas as sugestões: acabar com o botão de liga e desliga. A princípio, a equipe ficou desconcertada; mas depois percebeu que era mesmo desnecessário. O aparelho se desligaria gradualmente se não estivesse sendo usado e voltaria à vida quando manipulado.
Em outro exemplo, quando viu a barafunda de telas de navegação do projeto do iDVD, que permitia ao usuário gravar vídeo em disco, Jobs levantou, foi a um quadro branco e traçou um retângulo simples. “O novo aplicativo é isso aqui”, disse. “É uma janela só. Você arrasta o vídeo para a janela e clica no botão ‘Burn’. E só. É isso que vamos fazer.”
Ao buscar setores ou categorias no ponto para sofrer uma ruptura, Jobs sempre indagava quem estava fazendo produtos mais complicados do que deveriam ser. Em 2001, aparelhinhos portáteis de música e meios de comprar música na internet se encaixavam nessa descrição, levando ao iPod e à loja iTunes. Telefones celulares vieram em seguida. Jobs apanhava um celular numa reunião e começava a reclamar (com toda razão) que era impossível descobrir como acessar metade dos recursos, incluindo a agenda de telefones. No final da carreira, estava lançando os olhos sobre a indústria da televisão, que tornara quase impossível para o usuário clicar em um aparelho simples para assistir ao que quisesse, quando quisesse.
Assuma o controle de ponta a ponta
Jobs sabia que a melhor via para atingir a simplicidade era garantir que houvesse perfeita integração entre hardware, software e periféricos. Um ecossistema Apple — um iPod conectado a um Mac com software iTunes, por exemplo — permitiria que todo dispositivo fosse mais simples, que a sincronização fosse mais fácil e que falhas fossem mais raras. Tarefas mais complexas, como criar um novo playlist, poderiam ser feitas no computador, permitindo que o iPod tivesse menos recursos e botões.
Jobs e a Apple assumiram o controle da experiência do usuário de ponta a ponta — algo que pouquíssimas empresas fazem. Do desempenho do microprocessador ARM no iPhone ao ato de comprar o aparelho numa Apple Store, todo aspecto da experiência do cliente era intimamente ligado um ao outro. Tanto a Microsoft na década de 1980 como a Google dos últimos anos adotaram uma abordagem mais aberta, que permite que seus sistemas operacionais e software sejam usados por vários fabricantes de aparelhos. Às vezes, esse modelo de negócios se provou melhor. Mas Jobs acreditava piamente que era a fórmula para produtos piores (“crappier” era o termo que usava em inglês). “Ninguém tem tempo”, disse. “Todo mundo tem mais o que fazer do que pensar em como integrar computadores e outros aparelhos.”
Parte da compulsão de Jobs por assumir o controle daquilo que chamava de “the whole widget” vinha de sua personalidade, muito controladora. Mas também era movida por sua paixão pela perfeição e por fabricar produtos elegantes. Jobs tinha pavor, ou pior, de pensar no software da Apple sendo usado em aparelhos sem qualquer inspiração de outra empresa, e era igualmente alérgico à ideia de que um aplicativo ou conteúdo não autorizado pudesse poluir a perfeição de um aparelho da Apple. Foi uma abordagem que nem sempre maximizou o lucro a curto prazo, mas num mundo cheio de porcarias, de mensagens de erro indecifráveis e de interfaces irritantes, levou a produtos surpreendentes marcados por uma experiência maravilhosa para o usuário. Estar no ecossistema da Apple podia ser sublime como caminhar por um dos jardins japoneses de Kyoto que Jobs tanto amava, e nenhuma das duas experiências foi criada pelo culto à abertura ou por permitir que mil flores florescessem. Às vezes, é bom estar nas mãos de um maníaco por controle.
Quando atrás, salte à frente
A marca de uma empresa inovadora não é só que tem ideias novas antes das outras. Essa empresa também sabe pular etapas para se adiantar quando está atrás. Foi o que aconteceu quando Jobs fez o primeiro iMac. Jobs se concentrou em tornar o aparelho útil para a gestão de fotos e vídeos do usuário, mas ficou para trás quando o assunto era música. Quem tinha um micro no padrão Windows estava baixando e compartilhando música e, em seguida, gravando os próprios CDs. O drive do iMac não tinha essa função. “Me senti como um idiota”, disse. “Achei que tínhamos perdido o bonde.”
Só que, em vez de se contentar em recuperar o atraso e melhorar o drive de CD do iMac, Jobs decidiu criar um sistema integrado que transformaria a indústria da música. O resultado foi a combinação de iTunes, iTunes Store e iPod, o que permitiu a qualquer um comprar, compartilhar, gerenciar, armazenar e tocar música de um jeito melhor do que poderia com quaisquer outros aparelhos.
Quando o iPod virou o sucesso que virou, Jobs perdeu pouco tempo saboreando a vitória. Em vez disso, começou a pensar naquilo que poderia colocá-la em perigo. Uma possibilidade era a de que fabricantes de celulares começassem a incluir tocadores de música nos aparelhos. A saída foi canibalizar as vendas do iPod com o lançamento do iPhone. “Se não canibalizarmos nós mesmos, outra [empresa] o fará”, explicou.
Ponha produtos antes do lucro
Quando Jobs e sua pequena equipe criaram o primeiro Macintosh, no começo da década de 1980, sua ordem era que o aparelho fosse “absurdamente espetacular”. Jobs nunca falou de maximizar o lucro ou de derrubar o custo. “Não pense no preço, pense só em especificar os recursos do computador”, disse ao líder da equipe original. No primeiro retiro com a equipe do Macintosh, Jobs partiu redigindo a seguinte máxima no quadro branco: “Não façam concessões”. O aparelho resultante era caro demais e levou à expulsão de Jobs da Apple. Mas o Macintosh também “deixou uma marca no universo”, como disse ele, acelerando a revolução do computador nos lares. E, a longo prazo, Jobs chegou ao equilíbrio certo: se fizer um produto espetacular, o lucro a certa altura virá.
John Sculley, que dirigiu a Apple de 1983 a 1993, era um executivo de marketing e vendas da Pepsi. Quando Jobs saiu, Sculley se concentrou mais em maximizar o lucro do que na concepção de produtos, e a Apple aos poucos perdeu força. “Tenho minha própria teoria sobre as razões do declínio de empresas”, disse Jobs: [a empresa] faz um punhado de produtos espetaculares, mas aí o pessoal de vendas e marketing vem e assume o comando, pois só eles sabem turbinar o lucro. “Quando a turma de vendas toca a empresa, o pessoal de produtos não importa muito, e muitos simplesmente ligam o piloto automático. Foi o que ocorreu na Apple com a chegada de Sculley, o que foi minha culpa, e foi o que ocorreu quando Ballmer assumiu a Microsoft.”
Quando voltou, Jobs fez a Apple se concentrar novamente em criar produtos inovadores: o irreverente iMac, o PowerBook e, depois, o iPod, o iPhone e o iPad. O próprio Jobs explicou: “Minha paixão sempre foi erguer uma empresa duradoura, na qual as pessoas tivessem motivação para fazer grandes produtos. Tudo o mais era secundário. Obviamente, era ótimo ter lucro, pois era isso o que permitia que [a empresa] fizesse grandes produtos. Mas o produto, e não o lucro, era a motivação. O Sculley inverteu essas prioridades, e a meta virou ganhar dinheiro. É uma diferença sutil, mas acaba significando tudo — quem a empresa contrata, quem é promovido, o que se discute em reuniões”.
Não seja escravo de “focus groups”
Quando Jobs levou a equipe do Macintosh original para seu primeiro retiro, um membro do grupo perguntou se deviam fazer um estudo de mercado para ver o que o consumidor queria. “Não”, respondeu Jobs, “pois o consumidor não sabe o que quer até que nós lhe mostremos”. E citou a famosa frase de Henry Ford: “Se tivesse perguntado ao cliente o que ele queria, ele teria dito: ‘Um cavalo mais rápido!’”.
Ter profundo interesse naquilo que o consumidor quer é muito diferente de estar continuamente perguntando o que ele quer; é algo que exige intuição e instinto sobre desejos ainda não formados. “Nossa função é ler o que ainda não está na página”, explicou Jobs. Em vez de apostar em pesquisa de mercado, Jobs burilou sua versão da empatia — uma íntima intuição sobre os desejos de seus clientes. O empresário adquiriu esse apreço pela intuição — sensações fundadas na sabedoria experiencial acumulada —, enquanto estudava budismo na Índia, depois de abandonar a faculdade. “No interior da Índia, ninguém usa o cérebro como nós; as pessoas usam a intuição”, lembrou. “A intuição é algo muito forte — mais forte do que a inteligência, em minha opinião.”
Às vezes, isso significava que Jobs recorria a um “focus group” de um indivíduo só: ele próprio. Jobs fazia aparelhos que ele e os amigos queriam. Por volta de 2000, por exemplo, havia muitos aparelhinhos de música portáteis, mas Jobs achava todos uma porcaria e, amante da música que era, queria um dispositivo simples no qual pudesse levar mil canções no bolso. “Fizemos o iPod para nós mesmos”, disse. “E, quando está fazendo algo para si mesmo, para o melhor amigo ou para alguém da família, ninguém é mão de vaca.”
Distorça a realidade
A capacidade de Jobs de levar os outros a fazer o impossível foi descrita por colegas como seu “campo de distorção da realidade”, expressão tirada de um episódio da série Jornada nas Estrelas no qual alienígenas criam uma realidade alternativa convincente com a pura força da mente. Um dos primeiros exemplos foi quando, ainda na Atari, Jobs convenceu Steve Wozniak a criar o game Breakout. Wozniak disse que levaria meses. Jobs, sem piscar, insistiu que ele daria conta do trabalho em quatro dias. Wozniak sabia que era impossível, mas acabou conseguindo.
Quem não conhecia Jobs interpretava esse campo de distorção da realidade como um eufemismo para o bullying e a mentira. Já quem trabalhava com ele admitia que o traço, por mais irritante que fosse, fazia com que conseguissem feitos extraordinários. Já que achava que as regras comuns da vida não valiam para ele, Jobs podia inspirar sua equipe a mudar o curso da história da informática com uma pequena fração dos recursos que a Xerox ou a IBM tinham. “Era uma distorção autocumprida”, lembra Deborah Coleman, integrante da equipe do primeiro Mac que levou, um ano, um prêmio por ser capaz de enfrentar Jobs. “Você fazia o impossível porque não percebia que era impossível.”
Um dia, Jobs foi à baia de Larry Kenyon, o engenheiro a cargo do sistema operacional do Macintosh, e reclamou que o sistema estava demorando demais para inicializar. Kenyon começou a explicar por que não dava para diminuir o tempo de inicialização. Jobs o cortou: “Se isso fosse salvar a vida de uma pessoa, você acharia um jeito de diminuir em dez segundos o tempo de inicialização?”, perguntou. Kenyon admitiu que provavelmente sim. Jobs foi a um quadro branco e mostrou que se cinco milhões de pessoas estivessem usando o Mac e levassem dez segundos a mais para ligar o aparelho todo dia, seriam no total 300 milhões de horas ou mais por ano — o equivalente a pelo menos cem vidas ao ano. Semanas depois, Kenyon baixara o tempo de inicialização em 28 segundos.
Quando estava criando o iPhone, Jobs decidiu que a fachada do aparelho devia ser de um vidro resistente, que não riscasse — e não de plástico. Foi falar com Wendell Weeks, o presidente da Corning. Weeks contou que a Corning inventara um processo de permuta química na década de 1960 que levara ao que haviam batizado de “vidro gorila”. Jobs retrucou que queria uma tremenda remessa de vidro gorila para dali a seis meses. Weeks disse que a Corning não fabricava o vidro naquele momento e não tinha tal capacidade. “Não tenha medo”, respondeu Jobs. Weeks, que não estava habituado ao campo de distorção da realidade do empresário, ficou estupefato. Tentou explicar que uma falsa sensação de confiança não superaria os desafios de engenharia, mas Jobs mostrou reiteradamente que não aceitava essa premissa. Ficou ali, fitando Weeks sem piscar: “É possível, sim”, dizia. “Ponha isso na sua cabeça. É possível.” Weeks lembra de ter sacudido a cabeça em espanto — e, em seguida, de ter ligado para os gerentes da fábrica da Corning em Harrodsburg (Kentucky), que vinha fabricando telas de LCD, e dito que passassem imediatamente a fabricar o tal vidro gorila em tempo integral. “Em menos de seis meses, tínhamos conseguido”, conta. “Colocamos nossos melhores cientistas e engenheiros nisso, e fizemos com que fosse possível.” É por isso que, hoje, todo vidro contido no iPhone ou no iPad é fabricado nos Estados Unidos pela Corning.
“Impute”
Mike Markkula, um dos primeiros mentores de Jobs, passou ao pupilo três princípios num documento de 1979. Os dois primeiros eram “empatia” e “foco”. O terceiro era um termo canhestro, “imputar”, mas virou uma das principais doutrinas de Jobs. O empresário sabia que as pessoas formam uma opinião sobre um produto ou uma empresa com base em como é embalado ou como é apresentada. “O Mike me ensinou que as pessoas julgam, sim, um livro pela capa”, ouvi dele.
Em 1984, enquanto se preparava para lançar o Macintosh, Jobs ficou obcecado com a cor e o visual da caixa. Na mesma veia, gastou seu próprio tempo criando e recriando as caixinhas do iPod e do iPhone — e figura como um dos detentores da patente das embalagens. Ele e Ive achavam que desembalar um produto era um ritual como o teatro e simbolizava a glória do produto. “Quando [o consumidor] abre a caixa do iPhone ou do iPad, queremos que essa experiência tátil influencie sua percepção do produto”, disse Jobs.
Às vezes, Jobs usava o design de um aparelho para “imputar” um sinal (em vez de ser algo meramente funcional). Um exemplo: quando estava criando o novo — e irreverente — iMac, após a volta à Apple, Ive lhe mostrou os planos de uma versão com uma pequena alça no alto do aparelho. Era mais semiótica do que útil. O iMac era um computador de mesa — não ia ser carregado de um lado para o outro a toda hora. Mas Jobs e Ive achavam que muita gente ainda se intimidava com um computador. Se tivesse uma alça, o novo aparelho pareceria “amigo”, deferente, a serviço do usuário. A alça indicava permissão para tocar o iMac. A equipe de produção se opôs ao custo adicional, mas Jobs simplesmente anunciou: “Vamos fazer, e pronto”. Nem sequer tentou explicar.
Exija a perfeição
Durante o desenvolvimento de quase todo produto que criou, Jobs a certa altura “apertava o botão de pausa” e voltava à prancheta, pois sentia que a coisa não estava perfeita. Foi assim até com o filme Toy Story. Jeffrey Katzenberg e a Disney, que comprara os direitos do filme, tinham convencido a equipe da Pixar a tornar a animação mais apimentada e sombria. Mas Jobs e o diretor do filme, John Lasseter, a certa altura interromperam a produção e reescreveram o roteiro para tornar a história mais palatável. Às vésperas de lançar a Apple Stores, ele e seu guru de varejo, Ron Johnson, de repente decidiram adiar tudo por alguns meses para que a planta das lojas pudesse ser reformulada em torno de atividades e não só de categorias de produtos.
Também foi assim no caso do iPhone. No projeto inicial, a tela de vidro vinha com uma moldura de alumínio. Uma segunda-feira pela manhã, Jobs foi à sala de Ive. “Não consegui dormir esta noite”, disse, “pois percebi que simplesmente não gosto [da ideia]”. Ive, para o próprio espanto, imediatamente viu que Jobs tinha razão. “Lembro do constrangimento absoluto por ele ter tido de fazer aquela observação”, recorda. O problema é que no iPhone o destaque todo devia estar na tela, mas naquela versão a carcaça competia com a tela, em vez de sair de cena. O aparelho parecia masculino demais, funcional demais, eficiente demais. “Pessoal, vocês deram o sangue para esse projeto nos últimos nove meses, mas vamos mudá-lo”, disse Jobs à equipe de Ive. “Vamos todos ter de trabalhar de noite e nos fins de semana e, se quiserem, podemos distribuir umas pistolas para que nos matem agora.” Em vez de chiar, a equipe concordou. “Foi um dos momentos em que mais senti orgulho na Apple”, lembrou Jobs.
Algo parecido ocorreu quando Jobs e Ive estavam terminando o iPad. A certa altura Jobs olhou para o protótipo e se sentiu ligeiramente insatisfeito. O aparelho não parecia casual e simples o suficiente para que alguém o pegasse e saísse por aí com ele. Era preciso indicar que podia ser apanhado com uma mão, no impulso. A dupla decidiu que a borda inferior devia ser ligeiramente abaulada, para que a pessoa sentisse que não era preciso levantar o aparelho com cuidado, que podia simplesmente apanhá-lo e pronto. Isso significava que a engenharia teria de projetar as portas de conexão e botões necessários numa borda estreita com uma suave curva para dentro. Jobs segurou o lançamento até que a mudança fosse feita.
O perfeccionismo de Jobs se estendia até a coisas que ninguém via. Quando menino, teve de ajudar a construir uma cerca no quintal dos fundos da casa. O pai lhe disse que tinham de ter tanto cuidado com a cerca dos fundos quanto com a da frente. “Mas ninguém vai saber”, disse Steve. O pai retrucou: “Mas você, sim”. Um verdadeiro artesão usa madeira de qualidade até para fazer o fundo de um armário que fica encostado à parede, explicou o pai; deviam fazer o mesmo com a cerca dos fundos. Era a marca de um artista ter tamanha paixão pela perfeição. Na supervisão dos trabalhos do Apple II e do Macintosh, Jobs aplicou esta lição à placa de circuito no interior do aparelho. Nos dois casos, fez os engenheiros refazerem o trabalho para que os chips se alinhassem bem e a placa ficasse bonita. Parecia algo particularmente louco para os engenheiros do Macintosh, pois Jobs decretara que a máquina fosse hermeticamente selada. “Ninguém vai ver a placa”, protestou um deles. Jobs reagiu como o pai: “Quero que seja o mais bonita possível, ainda que esteja dentro do gabinete. Um bom marceneiro não vai usar madeira de quinta para as costas de um armário, ainda que ninguém vá ver”. Todo mundo ali era um artista, disse, e como tal devia se portar. Uma vez redesenhada a placa, colheu a assinatura dos engenheiros e de outros membros da equipe do Macintosh para gravá-las dentro do gabinete. “Um artista de verdade assina sua obra”, disse.
(Continua)
Walter Isaacson é presidente do Aspen Institute, autor de Steve Jobs e de biografias de Henry Kissinger, Benjamin Franklin e Albert Einstein
FONTE: Revista Harvard Business Review Brasil - Abril 2012